Nem CEOs de big techs, nem fundadores de unicórnios: um dos painéis mais populares do Web Summit Rio, com direito a gente sentada no chão (e muitas outras de pé, do lado de fora), foi o do filósofo Mario Sergio Cortella, conhecido por livros como Por que fazemos o que fazemos? e Felicidade: Modo de Usar, pela presença constante no rádio e TV, e pelos cursos administrados em seu canal no YouTube. Logo após a apresentação, ele se juntaria à reportagem de Época NEGÓCIOS para uma conversa nos bastidores.
O motivo prático para a presença de Cortella no evento foi divulgar suas mais recentes incursões no mundo digital: “Fala, Cortella”, pílulas diárias para assinantes no WhatsApp, e o curso online Ensinantes Digitais. Os dois serviços são resultado de uma parceria entre a agência Sophya, comandada por Pedro Cortella, filho do escritor, e a Manychat, plataforma de chat marketing presente em 170 países – no Brasil, é liderada pela executiva Flavia Rosario.
“O requisito central para colocar meus cursos e palestras online foi a decência”, disse Cortella durante o painel. “Ao contrário do que se diz, nós não fazemos qualquer negócio. A decência é o que dá a perenidade. É aquela alegria de chegar a mais lugares com algo que a gente entenda que tem importância.”
Mas, para o público que foi até o Pavilhão 3 do Riocentro, o que importava mesmo era ouvir as tiradas bem-humoradas de Cortella – dessa vez, seu alvo foram as relações entre seres humanos e tecnologia. “A IA é um recurso poderoso, mas não podemos confundir automatização, que oferece tempo para mim, com autonomia. Quero que elevador seja automático, aperto um botão e ele vai para onde eu quero. Mas não quero que seja autônomo, porque daí ele vai me levar para onde ele quiser”, disse.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista que ele concedeu a Época NEGÓCIOS.
Como é que você vê as mudanças que a humanidade está atravessando por conta da tecnologia?
Se você pensar na filosofia ocidental clássica grega, ela nasce no meio da tecnologia. Aqueles em quem pensamos como os primeiros filósofos, como Tales de Mileto, estão tentando lidar com um mundo em movimento - o próprio Tales se dedica àquilo que mais tarde será a mecânica. Por que estou falando sobre isso? Porque a preocupação com a maneira como as coisas funcionam e a busca por soluções mais simples para a vida humana existem no campo da filosofia há séculos.
A contemporaneidade trouxe, por meio da tecnologia, uma nova presença para a reflexão filosófica. O mundo tecnológico, às vezes apressado, gera algumas agonias, por conta de uma proximidade que é distante, uma conectividade que é exaustiva, uma presença que não repousa. E essas agonias fazem com que a filosofia tenha também seu lugar no mundo atual. Não é casual que, nos últimos dez anos, profissionais dessa área de filosofia tenham passado por uma popularização maior.
Então, na sua visão, as aflições geradas pela tecnologia deram vida nova à filosofia?
Nós podemos utilizar os caminhos que a tecnologia favorece para uma elevação da nossa consciência, da nossa convivência, da nossa prática. Mas esse mesmo mundo pode ser danoso. Ele pode trazer o afastamento, o digladiar, a convivência intempestiva marcada por uma resposta furiosa às coisas, em função da não maturação do tempo que você teria para refletir sobre algo que está acontecendo. Daí que a filosofia, que tem uma natureza só reflexiva, nos ajuda a ter uma vida menos banal, menos rasa, menos automática, menos alienada.
Falando sobre os efeitos danosos da tecnologia, hoje se fala muito em piora da saúde mental das novas gerações, por conta da desconexão provocada por ela. Você acredita nessa relação direta entre causa e efeito?
Existe hoje uma obsessão pela tecnologia que é arriscada. Se alguém me disser que meu filho ou minha filha passam a noite inteira conectados na internet, eu direi que estão doentes. Mas, se me disser que passam a noite inteira estudando Platão, também vou dizer que estão doentes. Toda obsessão é doentia. “O importante é ter sem que o ter te tenha”, já dizia Millôr Fernandes. Não seja possuído por aquilo que você possui. Então o que a tecnologia trouxe foi um enredamento mais facilitado, dado o encanto que ela carrega e a mística que ela proporciona. A tecnologia pode nos seduzir a tal ponto que nos aprisiona e, portanto, nos torna cativos, no duplo sentido da palavra, usado por Antoine de Saint-Exupéry [autor de O Pequeno Príncipe]. Sim, nós ficamos cativados por aquilo, mas ficamos também amarrados àquela condição. Daí a necessidade cada vez maior de alerta, e a filosofia é uma das formas de fazê-lo. Não é a única, e nem sempre é a melhor. Nazistas também tinham filósofos. Mas a filosofia ajuda a introduzir o que Descartes chamava de dúvida metódica no século 17: a suspeita organizada para fazer melhor e de modo mais benéfico.
Então, sim, hoje a tecnologia é danosa também para a saúde mental. Mas não é só isso. A mesma tecnologia que é capaz de fazer com que alguém tenha uma queda na sua condição de saúde é a mesma que pode auxiliá-lo a buscar outro tipo de conhecimento. Fiquei surpreso com o número de pessoas que eu tenho encontrado ao caminhar pelo Rio de Janeiro e que me dizem: “Você me ajudou demais. Durante a pandemia, você me salvou.”
Eu não sou da área de saúde, no sentido estrito. Mas essas pessoas tiveram acesso aos meus vídeos não estavam na minha sala de aula, não estavam lendo um dos meus livros. Tiveram acesso por outro caminho, a tecnologia. Então, a mesma mão que apedreja pode afagar. A escolha é nossa. Eu gosto de citar um ditado de uma nação indígena norte-americana que diz: “Dentro de mim moram dois cachorros. Um é absolutamente cruel e o outro é absolutamente bondoso. Vai vencer a luta aquele que eu alimentar mais.”
Mas não é apenas o indivíduo que alimenta os cachorros. No caso das mídias sociais, os algoritmos fazem isso - seguindo a determinação das big techs, para as quais a obsessão do usuário é um bom negócio.
Erich Fromm escreveu um dia que “liberdade não é licença”. O fato de eu ser livre não significa que eu estou autorizado a fazer qualquer coisa. Você pode beber e depois dirigir. Você é livre para isso, mas você não tem licença para fazer isso. Se você o fizer, será responsabilizada. Eu posso carregar uma arma, mesmo não tendo autorização. Eu sou livre, mas eu não tenho licença para fazer isso. Nesse sentido, a sociedade precisa lidar com a regulação da tecnologia, decidindo onde fica a transição da liberdade para a licença. Quer dizer, no mundo digital eu posso disser o que eu quiser, mas isso não me dá licença de falar o que eu quiser. Se eu o fizer, eu serei responsabilizado. Grandes corporações têm interesse ao domínio global há séculos. Mas você não conhece nenhum império que esteja de pé. Então, concluindo, o mundo digital permitiu acesso a realidades que estavam fora do meu campo de visão, o que é muito bom. Agora a discussão é sobre como a gente faz para que essa mobilização de percepções seja benéfica, e não danosa para o indivíduo.
A cobertura do Web Summit Rio 2024 na Editora Globo é apresentada pelo Senac RJ e Itaú, com o apoio da Prefeitura do Rio | InvestRio.